Repensar a economia. O desafio do século XXI.
Fonte: Portal Ecodebate17/04/2012“Não se trata de contestar o crescimento econômico por si só. Trata-se de fazer a pergunta que a ciência econômica habitualmente não faz: crescer para quê, para produzir o quê, para ter qual resultado na sociedade?”, questiona o professor titular do Curso de Economia da Universidade de São Paulo – USP.
Embora tenha sido possível produzir bens de consumo emitindo 21% a
menos de gases de efeito estufa e consumindo 23% menos materiais, o
crescimento econômico mundial foi tão expansivo, nas últimas duas
décadas, que os esforços econômicos e ambientais não surtiram efeito.
Com base nessas informações, e partindo de uma posição moderada, nem
pessimista nem otimista demais, o professor da USP, Ricardo Abramovay
(foto abaixo), destaca que, no atual período de transição para uma
economia de baixo carbono, os desafios para o planeta atingir a
sustentabilidade perpassam por mudanças não só na forma de produzir bens
de consumo e serviço, mas também de repensar a Ciência Econômica.
Essas foram as discussões centrais da palestra que Abramovay ministrou na Unisinos, na última quarta-feira, 12-04-2012, participando do Ciclo de palestras Rio+20, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Apesar de ser favorável ao conceito de economia verde, um dos temas centrais a ser abordado na Rio+20,
ele é enfático: “Reconhecer a importância das inovações tecnológicas
embutidas na ideia de economia verde não significa dizer que a economia verde
e, muito menos o suposto crescimento verde, são capazes de resolver os
problemas do século XXI”. Para ele, a desconfiança que os diferentes
participantes da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
têm em relação à efetividade da economia verde “tem razão de ser”. E
esclarece: “Essa desconfiança só será atenuada caso se consigam associar
as inovações tecnológicas da economia verde – que são importantes e
necessárias, a partir da ideia de limites e luta contra as
desigualdades”.
Antes do evento, Abramovay conversou com IHU On-Line
pessoalmente e falou sobre o que significa repensar a economia e os
desafios intelectuais e políticos que envolvem essa discussão. Segundo
ele, o momento atual exige mudanças decisivas especialmente “nos
propósitos da vida econômica. (…) Para a ciência econômica (a Economics)
o sentido da vida econômica não é algo que deva ser questionado: porque
cada indivíduo vai cuidar de si e o resultado vai ser o melhor para
todo mundo. Isso talvez fosse verossímil em um mundo de três bilhões de
pessoas. Mas em um mundo tão desigual e rumando para 10 bilhões de
habitantes, temos que nos perguntar para que se produz e quais são as
finalidades da vida econômica. É nesse sentido que penso que precisamos
ir além da economia, ou seja, repensar a economia com base nas suas
origens, como uma ciência organicamente integrada à questão do bem viver e da ética.
E não como uma mecânica dos interesses individuais de cuja interação
resultaria, de forma não intencional, não voluntária, maior riqueza e,
portanto, supostamente, maior bem-estar”, esclarece.
O professor também comenta a atuação dos líderes políticos que, preocupados com o crescimento econômico, não estão atentos às questões ambientais.
Em relação aos governos de esquerda e a um projeto que minimize as
desigualdades sociais, ele enfatiza que “as grandes aspirações
emancipatórias que marcam os movimentos socialistas desde o início do
século XIX terão que ser concebidas hoje no âmbito de uma sociedade em
que mercados e empresas privadas terão um papel decisivo e que não será
esvanescente”. Uma discussão profunda, assegura, consiste em “repensar o
mercado, vislumbrar a possibilidade de fazer dele um dos mais
importantes instrumentos de transformação social. Mas não se trata
absolutamente de suprimi-lo, nem imaginar que é possível ter uma
instância exterior ao mercado que o controlasse e que seria o Estado”.
Ricardo Abramovay
é graduado em Filosofia, mestre em Ciência Política e doutor em
Sociologia. É professor titular do curso de Economia da Universidade de
São Paulo – USP. Para acompanhar as publicações do pesquisador, acesse
sua home page abramovay.pro.br, ou pelo Twitter @abramovay.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais serão os temas mais críticos para o Brasil na Rio+20, considerando a agenda ambiental brasileira?
Ricardo Abramovay – A grande dúvida é que papel o Brasil, como liderança global, vai exercer na Rio+20. Esse papel será o de se adaptar à desconfiança que os temas ambientais veem suscitando cada vez mais no G-77,
como se eles fossem sinônimo de protecionismo por parte dos países
desenvolvidos, como se fossem antagônicos às grandes metas do
desenvolvimento? Ou, ao contrário, o Brasil tentará mostrar para os
outros países do G-77 que, submeter o comércio mundial a
regras civilizatórias referentes ao trabalho e à manutenção dos
serviços dos ecossistemas, dos quais dependemos, pode ser um fator
fundamental não só para a sociedade, mas também para a própria
prosperidade dos negócios?
Trata-se de dois caminhos antagônicos, e os documentos até aqui produzidos (o Rascunho Zero
e o documento brasileiro) flertam com a ideia de que temas ambientais
são formas usadas para impor barreiras comerciais não tarifárias. Essa
ideia traz um prejuízo muito forte para o avanço da discussão global
sobre o desenvolvimento sustentável.
IHU On-Line – Você tem uma visão otimista da economia verde,
mas essa percepção não é um consenso entre ambientalistas,
pesquisadores, líderes políticos e empresas. Alguns alegam que se trata
de uma mercantilização das questões ambientais pela economia, e outros
veem na economia verde a alternativa para pensar um mundo sustentável.
Como debater e avançar na Rio+20, se cada uma das partes tem uma
compreensão diferente do que seja economia verde?
Ricardo Abramovay –As críticas feitas por países como Cuba, Bolívia,
Venezuela, Equador e alguns países do Caribe, na reunião da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal em
novembro de 2011, sobre a Rio+20, são procedentes. Por mais que se
consigam avanços tecnológicos no sentido de melhorar o uso dos recursos
ecossistêmicos dos materiais e da energia, e por mais que se avance em
direção de energias renováveis, tudo isso é largamente insuficiente para
enfrentar os grandes problemas socioambientais do século XXI.
Então, reconhecer a importância das inovações tecnológicas embutidas na
ideia de economia verde não significa dizer que ela (a economia verde)
e, muito menos, o suposto crescimento verde são capazes de resolver os
problemas que temos pela frente.
Para resolver essas questões, faltam duas coisas. A primeira delas
resulta do fato de que, por mais que a economia verde tenha avançado,
isto é, por mais que sejamos capazes de produzir cada dólar, euro, yuam
ou real emitindo menos por unidade de dólar e usando menos material por
unidade de dólar, isso não é suficiente para dar conta dos problemas
ambientais do planeta. Nos últimos 20 anos a economia global produziu
emitindo 21% a menos de gases de efeito estufa por dólar, e consumindo
23% menos de materiais (relativamente a cada unidade de valor levada ao
mercado) do que há duas décadas. Só que o crescimento da economia
mundial foi tão espantoso que as emissões em termos absolutos, nesses 20
anos, aumentaram 39%, e o consumo de materiais aumentou 41%. Isso
mostra que é redondamente falsa a expectativa de que se pode continuar com o pé no acelerador
do crescimento e, por outro lado, que se possam introduzir inovações
tecnológicas que mudariam a composição e os métodos produtivos para
prosseguir no ritmo atual de expansão da economia mundial.
IHU On-Line – Os líderes políticos têm consciência de que não é mais possível crescer dessa maneira?
Ricardo Abramovay –Deveriam ter, porque esses dados que citei se
encontram nos principais documentos internacionais produzidos pelas
Nações Unidas e pelas mais importantes consultorias globais.
Portanto, a desconfiança dos países que mencionei anteriormente com relação à economia verde tem razão de ser. Essa desconfiança
só será atenuada caso se consigam associar as inovações tecnológicas da
economia verde – que são importantes e necessárias – a dois elementos
decisivos: limites e luta contra as desigualdades. Não é possível
imaginar que os andares superiores da pirâmide social mundial continuem
com seu atual consumo de recursos na expectativa de que a economia verde
seja capaz de propiciar que todas as pessoas tenham acesso a esse mesmo
patamar. As contas não fecham: não há energia e materiais suficientes
para fazer isso.
IHU On-Line – Como os tomadores de decisão econômica tendem a
se apropriar desse conceito de economia verde? Corre-se o risco de
novamente mercantilizar a questão ambiental, como aconteceu na Revolução
Verde, em que se aumentou a produção de alimentos, mas até hoje não se
resolveu o problema da fome, sem falar na ampliação do uso de
agrotóxicos? As aspirações do mercado e das corporações são as mesmas
daqueles que querem um planeta sustentável? As empresas estão dispostas a
fazer transformações sociais?
Ricardo Abramovay –As empresas agem por interesse. O interesse delas
é, antes de tudo, sobreviver. Mas dizer simplesmente que as empresas
visam somente o lucro e não estão preocupadas com as questões
socioambientais é ingênuo. Sobretudo, no que se refere às grandes
corporações, porque elas fazem estudos prospectivos relativos ao que
será o mundo nos próximos 50 anos e procuram se organizar
estrategicamente em função disso. Então, o que domina hoje o ambiente
corporativo – se não domina ao menos tem uma forte influência – é a
ideia de que estamos transitando de um mundo no qual o básico na
inovação é melhorar a produtividade do trabalho e do capital para um
mundo onde o mais importante desafio da inovação é melhorar a quantidade
e a qualidade de bens de consumo e serviço que se consegue obter da
mesma quantidade de matéria e de energia, emitindo e poluindo menos.
Por que as empresas estão preocupadas com isso? Por razões duplamente
materiais: por causa do seu “próprio bolso”; e também pela consciência –
e isso é inédito – de que matéria, recursos bióticos e energia não são
infinitos e, portanto, os critérios e parâmetros para seu uso terão de
ser mudados. Além disso, tem uma questão adicional
que é a influência da sociedade civil sobre as empresas. Essa
influência foi muito importante com relação à indústria do tabaco, cuja
importância tende a declinar em função da imensa pressão social. De
certa forma, a indústria automobilística, cada vez mais, também é vista
dessa forma. As pessoas que vivem nos centros metropolitanos se sentem
mais felizes quando conseguem organizar sua vida sem automóvel em
comparação a quando conseguem acesso ao ele. A indústria agroalimentar
também não poderá manter a atitude predominante até aqui de produzir
alimentos que geram obesidade e tentar compensar isso colocando nos
bairros pobres, quadras de esportes para as pessoas fazerem exercícios.
IHU On-Line – De que maneira a economia de baixo carbono
poderia fomentar a indústria nacional e interferir no processo de
desindustrialização?
Ricardo Abramovay – Foi anunciada uma medida segundo a qual o Brasil
levará para a Rio+20 a ideia de que as compras públicas em todo o mundo
devem ser pautadas por critérios de sustentabilidade. Isso é um elemento
positivo. Mas quando se observa o que está acontecendo em termos de
política industrial desde o início do atual governo, e quando se
considera que estamos no ano da Rio+20, percebe-se que há distância
entre desenvolvimento sustentável e as preocupações com relação à
desindustrialização. Cito um exemplo: o jornal Valor Econômico publicou, no início de março, um balanço das ações do governo federal para atenuar o quadro de desindustrialização
pelo qual o Brasil está passando. Nessa página do Valor há uma tabela
com 16 medidas que foram tomadas desde o início do governo, e seis
medidas que foram prometidas. Dessas 22 medidas, nenhuma tem relação com
a economia verde. As medidas do governo, por outro lado, são de
incentivar o crédito, conceder isenções fiscais, subsídios, etc. e, como
sempre, com forte ênfase no setor automobilístico.
O Brasil está na contramão de países como a China, Coreia do Sul e
EUA. Duas semanas depois da publicação dessa reportagem, houve um
encontro entre os 28 principais industriais brasileiros e a presidente
Dilma. O único momento em que a questão ambiental apareceu foi quando o
representante da Vale se queixou da lentidão no licenciamento ambiental.
Ou seja, o Brasil fez algo muito importante do ponto de vista do
clima, que foi reduzir o desmatamento, que era de 24 mil km² em 2004
para sete mil km² hoje. Mas temas como a questão urbana, a mobilidade e o
crescimento industrial
estão completamente dissociados da economia verde. É como se a economia
verde fosse uma espécie de tema florestal. Nesse sentido, o Brasil está
muito aquém do necessário para um país que será sede da Rio+20.
IHU On-Line – Pode citar alguns exemplos das iniciativas que
visam alcançar maior eficiência energética e material, gerando menos
poluição e impactos ao meio ambiente, que já estão sendo implantadas na
China e na Coreia do Sul?
Ricardo Abramovay –O ritmo global da transição para a economia verde é
muito mais lento do que deveria ser. Em todo caso, há exemplos
importantes nos carros elétricos, em residências que não só consomem
menos energia que o habitual, mas chegam a fornecer energia para a rede e
nos investimentos em eólica e solar, sobretudo vindos da China. O planejamento urbano
também recebeu sinais positivos, com cidades sendo pensadas em função
das pessoas, e não dos carros. Esse é um dos elementos mais importantes
para se conseguir compatibilizar a vida social com os ecossistemas.
Cidades sustentáveis são uma grande esperança de que os limites não
sejam destrutivos no sentido de bloquear as realizações das pessoas.
Pelo contrário, espera-se que o enfrentamento desses limites traga para
os indivíduos as maiores possibilidades de eles viverem uma vida que
vale a pena ser vivida, uma vida melhor e não pior. Ou seja, uma vida em
que uma pessoa não fique três horas parado dentro de um carro, em que
as pessoas possam trabalhar proximamente de suas residências para que
conheçam as pessoas do seu bairro e que vivam num circulo local e, ao
mesmo tempo, cosmopolita. Isso porque as pessoas estão conectadas,
ligadas às redes sociais.
IHU On-Line – Como imagina que seria a lógica de
funcionamento das indústrias da economia de baixo carbono, considerando
que hoje há muita pobreza no entorno das regiões nas quais estão
instalados os portos, as mineradoras e as hidrelétricas? No caso da
construção de um campo de energia eólica, poder-se-ia criar um bolsão de
pobreza também?
Ricardo Abramovay –Hoje uma das grandes preocupações das mineradoras,
por pressão da sociedade, é como será possível extrair minérios –
porque eles são necessários – de maneira não predatória. Isso depende
menos da vontade das empresas do que do ambiente em que elas estão
atuando. O Brasil tem uma tendência a fazer uma mineração cada vez menos
predatória. Nos países andinos, minha impressão é que os problemas
socioambientais da mineração são bem mais graves do que no Brasil. Ainda
é cedo para saber que regime de trabalho fazendas de energia eólica
irão implantar. Mas no Nordeste brasileiro, por exemplo, elas já estão
sinalizando algo positivo que são novas fontes de renda para
agricultores familiares em cujas terras vão se instalar.
IHU On-Line – Quando o economista francês Serge Latouche
esteve na Unisinos, disse que não conhecia o termo economia de baixo
carbono, mas sim pós-carbono. De todo modo, ele argumenta que para
resolver os problemas ambientais era preciso atuar além da economia. O
senhor concorda com essa percepção? A resolução da questão ambiental
passa pela economia ou está para além dela? Pensar em uma economia de
baixo carbono é significativo para as transformações necessárias neste
momento, ou é preciso ir além da economia?
Ricardo Abramovay –Nas línguas latinas, a palavra economia serve para
dizer coisas que em inglês são diferentes. Ir além da economia pode
significar ir além da Ciência Econômica (Economics). Isso sem
dúvida é verdade, porque a Ciência Econômica padece de um duplo vício.
De um lado ela, afirma-se como ciência à medida que se separa da ética,
porque as decisões dos atores são tomadas em função de seus ganhos.
Então, imagina se você tivesse um restaurante, e eu entrasse aí. Você
não irá reduzir o preço do almoço porque eu sou eventualmente simpático a
você. Quer dizer, as relações econômicas não passam por relações
pessoais, e essa é a condição de eficiência. Nesse sentido, a economia
se emancipa da ética. É importante essa emancipação.
Em segundo lugar, a Ciência Econômica se afirma como ciência à medida
que se emancipa da natureza. O nosso desafio maior, para o qual a
Ciência Econômica tradicional não está municiada, é reintegrar a ética à
economia, e a natureza à sociedade. Nesse sentido, concordo que temos
de ir além da economia verde e da Ciência Econômica, da Economics.
Mas a economia real (em inglês, a Economy), entendida como o uso que a
espécie humana faz dos recursos ecossistêmicos necessários à sua
reprodução, como ciência do metabolismo, da relação entre a espécie
humana e os meios dos quais ela dispõe para viver, não será suprimida
nunca, ao menos enquanto a humanidade existir. Mas acho que não era
disso que o Latouche falava. Ir além da economia, no fundo, para ele, é
ir além do mercado. Claro que tem que ir além do mercado. Isso é
necessário, porque tem de se fazer da economia uma ecologia social.
Nosso grande desafio intelectual e político consiste em pensar como
podemos nos organizar para usar os recursos de que dispomos buscando
produzir cada vez mais bem-estar. Quando se fala de ir além da economia,
do que se está falando? De ir além do mercado? Sim, isso é necessário.
Mas o que isso significa? Ir além do mercado para fazer um planejamento
central? Duvido que Latouche concorde
com essa ideia. Se é ir além do mercado no sentido de que o crescimento
não pode ser a orientação geral, segundo a qual se norteia o uso dos
recursos, aí então a concordância com esta ideia é, felizmente,
crescente e atinge segmentos do próprio mainstream da ciência
econômica..
IHU On-Line – Qual seria, então, um novo projeto para a
economia? Os Estados ainda precisam interferir mais no mercado
financeiro?
Ricardo Abramovay – Imaginar que os Estados sejam capazes de dar
conta do desafio que nós temos é ingênuo. Os Estados têm um horizonte de
curto prazo e, muitas vezes, de muito mais curto prazo do que as
empresas. Os Estados tendem a planejar em horizontes relativamente curtos
e, mesmo quando planejam em horizontes longos, a sua gestão é muito
menos clarividente do que habitualmente se supõe. Isso não significa
abolir o planejamento, que é absolutamente decisivo. Muito menos as
imposições legais que orientam a conduta dos agentes econômicos.
Significa, isto sim, que o planejamento do uso dos recursos
ecossistêmicos não responde mais à dicotomia convencional de um mercado
supostamente cego e de um Estado visionário.
Hoje, temos dispositivos extremamente poderosos de conhecimento da
vida social através das mídias digitais. Para se ter uma ideia: um smart
phone hoje tem a mesma potência computacional do Programa Apollo, que
foi para a lua em 1969. Essa potência está nas mãos das pessoas. O
professor Ignacy Sachs
conta que o planejamento econômico na Polônia nos anos 1950 era baseado
no ábaco, um antigo instrumento de cálculo. Imagine as possibilidades
de planejamento que os dispositivos digitais contemporâneos oferecem.
Ainda mais que são descentralizados e estão nas mãos das pessoas. A
compatibilidade entre planejamento e descentralização é muito maior do
que já foi na história humana. Na tradição marxista, o planejamento
seria descentralizado porque haveria assembleias, conselhos com pessoas
participando, que emitiriam sinais sobre o que a sociedade quer, etc. Só
que isso não funciona, resulta em autoritarismo; é ineficiente. Mas é
claro que os preços não podem ser os únicos vetores informativos sobre o
que é a demanda social. E os processos cooperativos aos quais a
economia da informação em rede abre caminho têm um potencial
transformador extraordinário.
IHU On-Line – Nesse sentido, qual a relevância das articulações em rede, tais como aquelas do Occupy Wall Street?
Ricardo Abramovay – São muito relevantes! Porque movimentos como esse
representam, em primeiro lugar, uma denúncia contra a injustiça. Houve
nos países desenvolvidos um processo impressionante de reconcentração de renda.
A concentração de renda nos EUA, hoje, atingiu o nível que tinha em
1929, depois de ter caído durante todo esse período. Em 1980, 1% mais
rico da população americana ficava com 8% da renda; hoje, esse mesmo
percentual fica com 24% dela. Triplicou a participação na renda do 1%
mais rico.
Comunidades virtuais
Mas tão importante quanto esse movimento, digamos assim, que assume
um caráter mais espetacular e de rua, é um movimento mais difuso que se
manifesta em forma de organização, de comunidades virtuais voltadas a
produzir bens e serviços seja de maneira gratuita, seja de maneira paga.
Um exemplo disso é a Wikipédia, que é o sétimo site
mais visitado da internet, tem 300 milhões de visitas por mês e produz
algo que é extremamente importante, conhecimento. A qualidade da
Wikipédia é totalmente comparável à qualidade da Enciclopédia Britânica,
que é feita por especialistas. A Wikipédia é feita quase que
integralmente, com exceção de uma pequena equipe administrativa, em
caráter voluntário e gratuito e produz uma riqueza impressionante. O Software Livre
também. Inclusive, algumas empresas, como a IBM, que é uma empresa
privada, se apoiam em software livre para muitos dos serviços que
oferecem. Ou seja, há um borrão, uma mistura entre o mercantil, o
privado e o público – o colaborativo que abre horizontes muito
promissores para o funcionamento da vida econômica.
Portanto, o debate é se a cooperação humana vai poder triunfar sobre o
simples autointeresse ou não. O que as mídias digitais propiciam é que
essa cooperação humana ganhe uma eficiência em uma escala não paroquial
completamente inédita, que abre horizontes que não conseguimos imaginar
quanto à sua fertilidade.
IHU On-Line – Então a mudança na economia, na política e nos
rumos do mercado financeiro passa por uma participação do cidadão
através das redes?
Ricardo Abramovay –São mudanças decisivas no próprio sentido, nos
objetivos, nos propósitos da vida econômica. Essa que é a questão básica
da nossa conversa. Para a ciência econômica (a Economics), o
sentido da vida econômica não é algo que deva ser questionado: porque
cada indivíduo vai cuidar de si e o resultado vai ser o melhor para todo
mundo. Isso talvez fosse verossímil em um mundo de três bilhões de
pessoas. Mas em um mundo tão desigual e rumando para 10 bilhões de
habitantes, temos que nos perguntar para que se produz e quais são as
finalidades da vida econômica. É nesse sentido que penso que precisamos
ir além da economia, ou seja, repensar a economia com base em suas
origens, como uma ciência organicamente integrada à questão do bem viver
e da ética, e não como uma mecânica dos interesses individuais de cuja
interação resultaria, de forma não intencional, não voluntária, maior
riqueza e, portanto, supostamente, maior bem-estar.
IHU On-Line – A segunda proposta da Rio+20 é pensar uma
governança mundial. Qual deveria ser o perfil dessa governança? Ela será
possível?
Ricardo Abramovay – Ninguém sabe. Nós sabemos criar agências nas
Nações Unidas e alguns acordos internacionais, mas isso está muito aquém
do mínimo necessário para se enfrentar essas questões. E, mesmo assim,
não estamos fazendo nem aquilo que está nas convenções já criadas.
Apesar da existência de uma Convenção da Biodiversidade ratificada amplamente, o Índice Planeta Vivo do WWF apresenta
redução de 30% entre 1992 e 2008 nos trópicos, decorrente de
desmatamento, poluição dos mares e aquecimento global, entre outras
coisas. São realizadas reuniões climáticas anuais e as condições
climáticas continuam se degradando; a desertificação não para de
aumentar; os países não chegam a um acordo. E a raiz disso é que, por
enquanto, nenhum governo aceitou a ideia de que é necessário repensar o
sentido do crescimento econômico. Não se trata de contestar o
crescimento econômico por si só. Trata-se de fazer a pergunta que a
Ciência Econômica habitualmente não faz: crescer para quê, para produzir
o quê, para ter qual resultado na sociedade? A ideia de que o
crescimento é bom porque produz empregos, impostos e um pouco de
inovação é insuficiente para legitimar o que a vida econômica representa
para a sociedade.
IHU On-Line – Recentemente a presidente Dilma declarou que na
Rio+20 não há tempo para fantasias, referindo-se àqueles que são
contrários à construção de novas hidrelétricas. Como o senhor interpreta
a posição brasileira de investir em mais hidrelétricas nos próximos
anos, considerando que se busca um modelo sustentável?
Ricardo Abramovay – É normal que uma presidente diga isso. Você
precisa de energia. A preocupação dela é fazer com que as coisas
funcionem. Agora, o que não me parece razoável, sobretudo num país como o
Brasil, é imaginar que construir hidrelétricas na Amazônia para
redistribuir essa energia para o resto do país, num modelo energético
altamente centralizado, seja a única maneira possível de obter segurança
energética. Por mais complexa que possa ser a questão, tenho a
impressão que isso é um raciocínio do século XX, não do XXI.
O último livro de Jeremy Rifkin, por exemplo, menciona o esforço de
produção descentralizada de energia, com a associação entre uso
sustentável dos recursos e inteligência digital. É um caminho que
precisa ser mais explorado.
IHU On-Line – Gostaria de retomar a questão de que os líderes
políticos ainda não têm a percepção de investir nas questões
ambientais. Tratando-se especificamente dos líderes de esquerda, como vê
esse posicionamento? O que a impede a esquerda de lançar novas
propostas?
Ricardo Abramovay –À esquerda europeia, sobretudo, se organizou até o
início dos anos 1980 a partir da ideia de que o caminho da transição
para uma sociedade melhor passava por nacionalizações democráticas. Era o
programa da Union Populaire na França. Nacionalizar os dez maiores
monopólios do país colocaria nas mãos do Estado três quartos da
capacidade de investimento. Quando o governo Mitterrand, na França,
assumiu o poder em 1981, a ideia que dominou era de se estatizar e
nacionalizar uma parte importante da vida econômica, fazendo com que
esse segmento escapasse à lógica do mercado e passasse a obedecer a uma
lógica social. Isso durou um ano e foi cabalmente revertido. E o mais
impressionante é: nunca mais, em qualquer parte do mundo, a esquerda
voltou a conceber um modelo de transição com esse conteúdo.
Acerto de contas
Só que não se fez um acerto de contas com esta estratégia da qual
hoje ninguém mais fala. Quer dizer, havia uma estratégia que, no fundo,
era de crítica ao mercado e que rumava em direção à ideia segundo a qual
uma sociedade melhor é aquela em que mercados e empresas privadas vão
exercendo papéis cada vez menos importantes. Posteriormente, os líderes
abandonaram essa ideia, só que continuaram sendo de esquerda. Se as
pessoas não concordam mais com esses valores, continuam sendo de
esquerda por quê?
As grandes aspirações emancipatórias que marcam os movimentos
socialistas desde o início do século XIX terão que ser concebidas hoje
no âmbito de uma sociedade em que mercados e empresas privadas terão um
papel decisivo e que não será esvanescente. Os equipamentos intelectuais
que tínhamos para pensar a emancipação social, quando a estratégia era a
nacionalização democrática, não foram substituídos por um corpo
conceitual que nos permita pensar estes processos emancipatórios no
âmbito de uma sociedade em que mercados e empresas privadas são
fundamentais.
O que acontece com a esquerda europeia é que, quando chega o momento
da eleição, todo mundo vira anticapitalista: banaliza-se a crítica à
globalização e, muitas vezes, às grandes empresas. Só que essa crítica
se torna puramente retórica. A meu ver, esse impasse só pode ser substituído por uma reflexão muito
séria sobre o que é empresa privada e o que são mercados. E aí
justamente a economia é muito insuficiente. A sociologia,
particularmente a sociologia econômica, pode dar uma contribuição muito
forte.
IHU On-Line – A falta de proposta da esquerda decorre, em
certa medida, do fato de ela ter sido cooptada pelo neoliberalismo ou
por ela não ter conseguido avançar por si só?
Ricardo Abramovay –A social democracia foi certamente cooptada. Mas,
na verdade, o problema é que se perdeu o horizonte anterior e ninguém
sabe muito bem qual é o novo horizonte. Dizer que tem que ir além da
economia, quando você está numa economia em que o mercado tem o papel
decisivo, é complicado. O que queremos dizer com essa discussão? Menos
mercado? Menos empresas privadas? Certamente há um amplo acordo sobre o
fato de que o domínio das finanças sobre a vida econômica extrapolou os
limites do razoável. Mas isso é um consenso mesmo em Davos. Nossa
discussão é mais profunda e se refere àquilo que até aqui foi encarado
como quadratura do círculo: a possibilidade de uma economia voltada ao
bem-estar das pessoas e que respeite as fronteiras dos ecossistemas, mas
que se organiza fortemente com base em incentivos de mercado e em
organizações privadas.
Por isso que considero tão promissores os movimentos sociais que se formam a partir da sociedade da informação em rede. André Gorz
depositava imensa esperança nesses movimentos emancipatórios, embora
ele não tenha visto o que me parece a salutar e promissora mistura entre
economia cooperativa e economia privada no interior destes movimentos.
IHU On-Line – A partir da história do capitalismo, o senhor vislumbra o quê?
Ricardo Abramovay –Não é salutar para uma sociedade moderna (foi o
que mostrou o curto século XX) suprimir a concorrência nos mais
diferentes planos, e não é salutar dissociar inteiramente a vida
econômica dos ganhos que a oferta de bens e serviços pode traduzir para
as pessoas. Mas, ao mesmo tempo, o que está se tornando mais claro é que
o potencial da cooperação, da colaboração direta entre as pessoas na
oferta eficiente de bens e serviços, é tão grande e foi tão maximizado
com o advento da sociedade na informação em rede que nós vamos ter,
provavelmente, uma mistura das duas coisas. Uma mistura, porém, que não
pode ser encarada como, de um lado, um setor e, de outro lado, outro
setor. Essa mistura vai ser um verdadeiro borrão em que o setor privado
vai estar fortemente determinado nas suas ações por preceitos de
natureza ética e de respeito aos ecossistemas, e o setor associativo
também vai ter uma lógica competitiva, sem a qual ele acaba caindo no
clientelismo. Isso já começa a ocorrer.
IHU On-Line – É como juntar um pouco das ideias da direita e
um pouco das ideias da esquerda em uma terceira via, ou uma alternativa
pela cooperação, como o senhor diz?
Ricardo Abramovay –Não é uma terceira via. Ignacy Sachs usa
a figura da terceira margem do rio. È fundamental repensar o mercado,
vislumbrar a possibilidade de fazer dele um dos mais importantes
instrumentos de transformação social. Mas não se trata absolutamente de
suprimi-lo, nem imaginar que é possível ter uma instância exterior ao
mercado que o controlasse e que seria o Estado. Há uma organização
empresarial norte-americana chamada Benefit Corporation
que vai exatamente nessa direção. Os mercados devem converter-se em
meios para atingir finalidades sociais. Num certo sentido é também o que
faz o Grameen Bank, quando se associa com a Danone. Mas tudo isso é
muito incipiente. É muito mais forte a reflexão cética, segundo a qual
nós perdemos o horizonte, do que a reflexão propositiva, que diz que se
está construindo um novo horizonte.
IHU On-Line – Professor, para encerrar pode nos falar sobre o seu novo livro intitulado Muito além da economia verde, que será lançado na Rio+20, pela editora Planeta Sustentável?
Ricardo Abramovay –Este livro nasceu de um pedido que me foi feito pela Fundação Avina
para aprofundar uma reflexão sobre a nova economia, sem que soubéssemos
muito bem o que este termo significava exatamente. Foi constituído um
grupo, no interior da Avina que durante várias semanas realizou reuniões
virtuais e isso ajudou a dar os contornos do que seria o trabalho, que
acabou se tornando o livro. Não é muito habitual que organizações da
sociedade civil proponham uma reflexão abrangente sobre o significado
geral da vida econômica para as sociedades contemporâneas. O ponto de
partida da Fundação Avina é uma categoria cara a Leonardo Boff e ao
filósofo colombiano Bernardo Toro, a ética do cuidado. À primeira vista,
nada poderia ser mais distante da ética do cuidado do que a frieza e a
impessoalidade própria das relações econômicas numa sociedade
capitalista. Muito mais do que formular ideais abstratos sobre o que
poderia ser uma vida econômica em que a ética do cuidado orientasse os
comportamentos, nossa reflexão conjunta procurou duas coisas. Em
primeiro lugar, o texto afasta-se das soluções fáceis que consistem em
dizer (como vimos no início de nossa conversa) que há soluções rápidas e
indolores para a transição pela qual devemos passar.
Mutação
Talvez seja nesse sentido que Marina Silva (autora
do prefácio do livro) fala que não é transição e sim mutação. Por mais
importantes e necessárias que sejam as conquistas científicas e
tecnológicas da economia verde, elas não são e não podem ser um atalho
para permitir que a economia mundial siga no rumo do crescimento, que
agora seria um crescimento sustentável. O livro se inspira no pensamento
de Amartya Sen,
no sentido de mostrar que o fundamental não é apenas o aumento da
riqueza, mas sim o que as pessoas fazem com ela. Tão importante quanto
esta abordagem crítica do crescimento econômico e da riqueza é o fato de
que há sinais muito significativos de mudanças (base para as mutações
das quais fala a Marina) por parte de empresas, dos Estados e de
organizações da sociedade civil.
A quantidade e a profundidade crítica de documentos vindos de algumas
das mais importantes consultorias globais são um sintoma disso.
Forma-se um movimento empresarial incipiente, porém expressivo, contra a
submissão da vida econômica aos imperativos das finanças. Mais do que
isso, estamos vendo o início de um surpreendente questionamento, vindo
do próprio meio de negócios, sobre o que significa valor. Isso entre
estudiosos, consultorias, mas também no interior de algumas grandes
empresas. Essa reflexão relaciona-se com um processo crescente de
participação de organizações da sociedade civil na própria gestão
empresarial. A sociedade da informação em rede abre, sobretudo, um
horizonte, um conjunto de possibilidades para a cooperação que são muito
promissoras. Sou muito grato à Fundação Avina por ter me aberto a possibilidade de aprofundar tais reflexões.
(Por Patricia Fachin, Luana Nyland, Natália Scholz)
(Ecodebate, 17/04/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU,
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo,
RS.]
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