sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Um conde italiano na Floresta Amazônica

Fonte: Revista Época 30/09/2016
O italiano Ermano Stradelli chegou à Amazônia há 140 anos em busca de aventura. Apaixonou-se pelos mitos dos povos nativos - e virou, ele mesmo uma lenda´
RAFAEL CISCATI

Índios Ipuriná em 1889. (Foto: Ermano Stradelli)




Os tucanos, habitantes nativos do alto Rio Negro, vivem na região conhecida como Cabeça do Cachorro. É onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Quando passam de um país para outro, os tucanos contam uma história que explica o desenho daquelas linhas imaginárias. João Paulo Barreto tinha 11 anos quando a ouviu pela primeira vez. Ele e o pai iam à Colômbia visitar parentes. O pai de Barreto é um yai, um pajé. A meio caminho, estacou. “Ele apontou a bandeira que indicava onde a fronteira passa. Explicou que havia sido colocada ali pelo homem branco”, diz Barreto, 20 anos passados desde o ocorrido. “E que o Doutor Conde é que tinha ensinado a eles onde acabava o Brasil.”
Na mitologia do povo tucano, Barreto aprendeu, o Doutor Conde é um wai mahsu – um ser com forma humana, mas com habilidades sobrenaturais. Foi o responsável por estabelecer os limites do Brasil. Nas histórias do homem branco, Doutor Conde tem limitações bem mortais e outro nome – conde Ermanno Stradelli, um italiano que empenhou sua fortuna para vir ao Brasil. Registrou as línguas e as lendas dos povos da Amazônia. A serviço do governo brasileiro, ajudou a delimitar fronteiras do norte. Morreu idoso, vítima de lepra, esquecido pelos círculos de intelectuais que frequentou. Entre os tucanos do Rio Negro, o Doutor Conde virou lenda.

Ermanno Stradelli. (Foto: Divulgação)
De altura mediana, cabelo cortado curto e barba aparada em ponta, Stradelli chegou a Manaus em 1879, aos 27 anos. Vinha, como outros jovens europeus de famílias abastadas, em busca de aventuras em uma terra exótica. Na Itália, deixara um curso de Direito inconcluso, um casamento anulado e uma família desapontada com o rumo do primogênito. “Stradelli chocou a família com as escolhas dele”, diz a cientista política Livia Raponi, vice-diretora do Instituto Italiano de Cultura. Nos últimos 12 anos, ela reconstituiu os passos do aventureiro. O esforço resultou em uma exposição fotográfica com imagens feitas pelo conde em andanças pela floresta – Nos passos de Stradelli. Viagem à Amazônia (organizada pelo Instituto Italiano de Cultura, a ser aberta em 6 de outubro em São Paulo, na Oficina Cultural Casa Mario de Andrade). E também um livro de ensaiosA única vida possível. Itinerários de Ermanno Stradelli na Amazônia(Editora Unesp, a ser lançado em 6 de outubro), organizado por Livia. Barreto – hoje, antropólogo – é autor de um dos 10 textos que compõem a coletânea.
Entre 1880 e 1891, Stradelli empreendeu mais de dez viagens pelos rios da Amazônia. Carregava sempre uma câmera fotográfica. Perdeu uma delas num naufrágio. Em seus registros, detalhou hábitos dos índios e mapeou, com esmero, o curso dos rios. Apaixonou-se pelo idioma nheengatu – uma variação do tupi, que registrou em um dicionário. Ainda hoje é língua franca em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, onde Barreto nasceu.
Stradelli chegou ao Brasil num momento em que Manaus crescia, avivada pela riqueza da borracha. Ficou impressionado com a cidade: no calor úmido da selva, surgiam edifícios suntuosos. Conforme aumentava a presença dos colonizadores da região, acirravam-se os embates com os indígenas e as tentativas de catequizá-los. Em seus escritos, Stradelli critica a atividade missionária: “É preciso deixar o indígena tranquilo em suas florestas”, afirma. O respeito pelas culturas locais lhe garantiu boa circulação entre os índios. Por isso, quando os índios crixanás decidiram impedir a navegação pelo Rio Jauaperi, o governo do Amazonas procurou Stradelli para mediar as conversas e estabelecer uma trégua.
cronicas (Foto: cronicas)
O embate entre brancos e índios naquela área havia se acirrado a partir de 1840. Morreram muitos brancos e um número ainda maior de índios. Stradelli escreveu que considerou “irresistível” o convite para negociar a paz. Sua comitiva partiu de Moura, à beira do Rio Negro, na Páscoa de 1884. Numa manhã, enquanto o grupo tomava café em uma ilha, os crixanás apareceram: 20 guerreiros armados com flechas, que batiam no peito e urravam como possessos. Seus cabelos eram tingidos de vermelho. Vestiam somente uma estreita tira de algodão amarrada à cintura, adornada com penas de tucano – com exceção de três deles. Esses usavam roupas que o grupo de Stradelli deixara como presente no leito do rio. Um porta-voz da comitiva tentou contato com os índios. Percebeu que, apesar da carranca, vinham dispostos ao diálogo. A paz com os crixanás foi celebrada com um banquete: porco do mato, peixe e biju de farinha de milho.
Stradelli se naturalizou brasileiro em 1893. Passou seus últimos anos em Tefé, cidade do interior onde trabalhou como promotor público. Anos antes, voltara à Itália para concluir o curso de Direito (escreveu uma tese em que defendia o direito dos indígenas à posse das terras que ocupavam). “A trajetória de Stradelli foi excepcional para os padrões da época. A maneira dele de olhar os povos ameríndios e as manifestações culturais deles é surpreendentemente moderna e antecipadora", afirma Livia.
O conde dizia que chegaria aos 100 anos. “Ele era adepto da homeopatia. Por isso achava que viveria muito”, diz Aurora Bernardini, professora de literatura italiana da Universidade de São Paulo – e também autora de um dos ensaios do volume organizado por Livia. A história do explorador foi abreviada pela lepra. Quando percebeu que estava doente, Stradelli ainda tentou voltar para a Itália. Foi impedido de embarcar. Isolou-se em uma colina onde, até seus últimos dias, trabalhou para concluir seu vocabulário de nheengatu. Morreu em 1926, aos 74 anos, sem vê-lo publicado. Sua figura foi esquecida. Desde os anos 1990, sua obra passa por momentos de redescobertas: hoje, seu dicionário é usado em cursos universitários. Nesses anos de ostracismo, a memória de Stradelli resistiu entre os povos do Rio Negro. “Pode perguntar a qualquer um”, diz Barreto. “Os tucanos não esquecerão o Doutor Conde.”

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