domingo, 22 de agosto de 2010

Texto do Prof. Armando Mendes

Depois de uma longa parada para reflexão, férias e outras atividades estou de volta. Apresentando o texto: Breve introdução à Teoria Geral de uma verdadeira ACADEMIA AMAZÔNICA, entregue pelo próprio autor o Prof. Armando Mendes, grande amazonólogo que tive a honra de conhecer pessoalmente, e que, entre tantos outros atributos, cunhou o neologismo que dá título a este espaço. Fiquei imensamente feliz por ter tido o privilégio de conhecer um homem culto, de inteligencia superior, vivaz e instigante, totalmente apaixonado pela Amazônia, a qual é o tema central de sua intensa produção intelectual.

Breve introdução à Teoria Geral de uma verdadeira ACADEMIA AMAZÔNICA
Armando Dias Mendes 
Professor universitário aposentado, não inativo
Fundador do NAEA - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos

Em suma:
Plataforma
      I - O trivial acadêmico
a academicidade genérica
   II - O radical amazônico
a amazonidade específica
III - O acadêmico amazônico ideal
a trivialidade nada banal da academia amazônica


Lançamento

A Alma Mater da Academia Amazônica
e a pertinente, tempestiva, plausível Agenda Forense
(deste Fórum de Programas de Pós-Graduação etc.)

Bem a propósito...
Notas finais
Este é o esqueleto descarnado da Conferência de abertura do I Congresso do Fórum dos Programas de Pesquisa e Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Belém, 9 de junho de 2010). Talvez fosse melhor a chamar de “Breve e despojada introdução etc.” por deliberadamente desprovida de apoios em autoridades, textos, reverências. Exposta, portanto, a tempestades e vendavais sem proteção externa, valendo pela própria lógica, gramática e retórica. Mas há menções e citações ocultas. Não se acanhe o leitor em, se quiser, as desnudar. 

-- I --
ACADEMIA(1)

1. A Universidade ocidental, nascida no século XI (Bolonha, 1088), à sombra das catedrais e mediante bulas papais, nada mais era, do ponto de vista formal, do que a conjunção, congregação ou comunidade de professores e alunos residentes em algum lugar: universitas magistrorum et scholarium a Parisii comorantium... (1215)(2)
Por outro lado, do ponto de vista material, pode ser definida sumariamente ainda hoje como “um lugar para reflexão”(3) . E a presente reflexão sobre esse lugar assentará brevemente nesses dois pilares.
2. A Universidade medieval propiciava o studium generale, os estudos ditos gerais por abrangerem a generalidade dos conhecimentos da época (4). Um primeiro conjunto era constituído pelo trivium (5). A saber, numa interpretação livre:
      - Lógica, a disciplina do pensamento, a arte de pensar: o entendimento das coisas, o conhecimento em si.
     - Gramática, a disciplina da comunicação, a arte de expressar o pensamento: o estendimento(6) do conhecido aos outros.
     - Retórica, a disciplina da argumentação, a arte de convencer: a utilização (o modo de tornar útil) do conhecimento. O envolvimento com uma proposta de ação.
A isso se agregava o quadrivium, que pretendia oferecer os rudimentos ou embrião das ciências da época, o conhecimento aplicado: aritmética, geometria, música e astronomia e o que essas disciplinas proporcionavam. Mas prevalecia o trivial.

3. Fugindo a digressões e dissensões filosóficas e pulando etapas históricas, percebamos nessas raízes medievais, por um lado, a configuração moderna da universidade humboldtiana, assente na pesquisa: uma real academia alicerçada na reflexão, cúmplice do saber, voltada para o ser humano enquanto protagonista da história do universo e seu transformador. Por outro, a universidade napoleônica, de viés profissionalizante: uma escola de terceiro grau preocupada essencialmente com o saber fazer, um ente conformador do estudante às necessidades do aqui e agora.
Aquela, portanto, solidamente assente no trivium; esta, pretendendo levar às últimas conseqüências as potencialidades atuais do quadrivium.
O trivial acadêmico entendido, dessa forma, não como o banal ou irrelevante, mas como o básico.

Tensão crucial nº 1 – Estabelecem-se os parâmetros para o embate entre o que podemos denominar de:

     a academicização do universo exterior ao campus, tido e havido como seu mero objeto de estudo, por um lado, 
     e a universalização da academia, o universo enquanto projeto do refletir e agir acadêmico, por outro.

A torre de marfim e o farol. O escarmento e o fermento.

-- II --
AMAZÔNIA

4. Coexistem muitas ‘amazônias’, conforme os interesses e as paixões em causa:
- uma realidade geofísica, o hábitat e seu entendimento, a Ecologia(7) :
- uma outra realidade, geo-social e humana, o habitante e seu comprometimento, a ‘Ecomenia’(8) :
- permeando e cimentando as duas, uma realidade geo-econômica, o relacionamento do homem com o seu hábitat e os seus hábitos, o reino da Economia (9):
- coroando, ou entranhando a tudo, uma realidade geopolítica, a coexistência e o convívio dos seres humanos em sociedade, a habitabilidade desse território(10).

5. Na realidade o trato político atravessa a consideração de todas essas realidades, e devemos lidar com uma Ecologia Política, uma Economia Política, uma Ecomenia Política. E esse trato político é que, aplicado de forma truncada à Amazônia, desemboca numa visão unidimensional responsável pela prescrição de modelos de ‘desenvolvimento’ tanto orientados pela ecologia pura como pela pura economia. Desumanizados, por assim dizer. A ecomenia posta a serviço da ecologia ou da economia, quando deve ser o contrário. O santuário versus o almoxarifado prevalecendo de modo absoluto, ou um, ou o outro. Ambos inaceitáveis.
As duas são visões e modelos externos à região, mutilados, conflitantes entre si, mas vendo na região apenas uma ‘presa’ a ser manipulada para seus interesses: a Amazônia enquanto objeto de conhecimento e deleite, ou fator de cobiça e fruto apetecível de um amor de concupiscência. As visões a partir de dentro, ao invés, estão centradas no amazônida, integrado ao seu meio ambiente e interagindo com ele, pugnando por um recíproco amor de complacência de e para com os não-amazônidas.

Tensão crucial nº 2 – Desenha-se o confronto entre as propostas de:

   - planetarização da Amazônia, a apropriação desta pelas engrenagens da globalização, ou a

   - amazonização do planeta, a ávida aceitação por este dos seus sabores, saberes, fazeres, olores, amores, valores...


-- III – 
ACADEMIA AMAZÔNICA

6. É hora de rever as definições inaugurais. Temos agora, em desenho:

- algo como uma, múltiplas universitas magistrorum et scholarium da hiléia, e também

- um lugar amazônico para uma necessária

   - reflexão amazônica, por ser ela própria o sujeito que reflete, 
  - e ao mesmo tempo uma reflexão sobre a Amazônia, que é o seu objeto de estudo a inventariar, e finalmente
   - pela ou em prol da Amazônia enquanto projeto a inventar.

Claro, lugares não amazônicos podem laborar lógicas, gramáticas e retóricas voltadas para a Amazônia enquanto objeto e projeto, mas dificilmente podem ser acolhidos como pousos de autênticos sujeitos amazônicos postos em reflexão.
Quer dizer: a academia amazônica, mais do que qualquer similar, não pode ser senão um refletor do seu entorno natural e cultural, seu observatório incansável, o laboratório virtual (por vezes real) de suas transformações, o reformatório ideal de suas instituições. Uma maternidade, um berço, uma parteira intelectual de amazônias nascituras, uma incubadora de políticas públicas de mudanças. Alma mater. Jamais, mero crematório ou necrotério de experiências mal sucedidas, um cartório de registro de óbitos, um IML de agendas fracassadas. Ou mesmo um museu de coisas irrealizadas e teratologias. Farol, reitere-se, a iluminar a estrada para diante. Não luz de popa a sinalizar rotas de fuga.

Tensão crucial nº 3 – A decisiva e consciente escolha entre

- a amazonização da Academia, fazendo com que esta se debruce sobre a região, e por isso a reflita, e reflita sobre ela, versus

- a academicização da Amazônia, que passa a refletir a ciência pela ciência, a ars gratia artis de um academicismo narcisista incurável escorado no luxo da Amazônia como pano de fundo.

Plano de vôo

7. O Fórum se propõe, consciente e deliberadamente, um Programa Institucional compreendendo duas vias e atividades centrais, seminais:

- a Cátedra Amazônica

- Projeto Amazônia.

A Cátedra dá conta da investigação e inventariação da Amazônia, cujo resultado é preciso transmitir, difundir, compartir. O Projeto decola do inventário venturoso para a aventurosa invenção, mobiliza a arqueologia para construir a utopia. Abandona as histórias pretéritas em favor de histórias proféticas. Apóia-se no passado para engendrar o futuro.
Essa fantástica (11) tarefa somente será possível na medida em que a Academia regional esteja entranhada de, na e para a Amazônia Sempre, é evidente, com todo o rigor científico, probidade intelectual e postura ética. Não se pretende inaugurar uma ciência pura de talha amazônica, confrontadora da universal. Ou defender uma ética, uma estética, uma eidética tapuias. O que se repudia é a alegação do purismo científico para inviabilizar a capacidade objetiva de a Amazônia pensar por si sobre si própria. O que se propugna é a sua Academia consolidar-se como verdadeiramente um lugar amazônico para reflexão amazônica sobre os destinos amazônicos.
O que se pretende, em resumidas contas, é que a matéria prima do afazer acadêmico aplicado seja, na Amazônia, a própria Amazônia. E não, digamos ao acaso, a Patagônia, a Calcedônia, a Caledônia (a antiga ou a Nova)... Ou a ilha de Baratária, Shangri-La. Paságarda, que é onde o poeta é amigo do rei.
Baste-nos o Grão-Pará ou Parauassu e seus enigmas .

Bem a propósito...

(1)Recorde-se, se for de bom alvitre, a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles. Excederia o nosso propósito.
(2)Universitas sendo um substantivo comum: universitas librorum significando o conjunto ou acervo de livros, livraria, biblioteca; universitas bonorum, o conjunto de bens, patrimônio.
(3)‘Reflexão’ sendo o dobrar-se sobre si mesmo, e sobre o entorno, enquanto objeto de atenção, extensão e intenção: pensamento, entendimento, envolvimento. Pesquisa, ensino, integração. Ver, julgar, agir. Lógica, gramática, retórica. O ápice da consciência, o ser humano sendo o único ser consciente de que é consciente. Logo, capaz de reflexão.
(4)Os estudiosos resultavam habilitados a exercer as “artes liberais”, por serem praticadas livremente e por serem os seus praticantes homens livres.
(5)Plural: trivia, indicando a junção, ou dispersão, de três vias, ou caminhos, ou estradas. Entroncamento. Quadrivium: quatro vias.
(6)Neologismo plausível, isto é, digno de aplausos, por necessário, pertinente, inevitável.
(7)Espaço, ar puro, água potável, solo/subsolo, flora/fauna, alimentos, energia, paisagem, clima, imaginário... E portanto, biologia, zoologia, mineralogia, hidrologia, botânica, a biodiversidade e por aí adiante...
(8)Neologismo também, mas já de alguns anos: a compreensão do ecúmeno, por paralelismo com Ecologia e Economia. O homo amazonicus, sócio-diversidade, povoamento e distribuição... Inspirando a antropologia, a sociologia, a demografia, o direito...
(8)Note-se que a tríplice reflexão sobre o oikos amazônico aparece aqui ao nível do seu trivium particular: ecologia amazônica, economia amazônica, ecomenia amazônica. E se distingue a Economia da pura Crematística: produção, circulação, distribuição de bens e serviços e as regras que os regem, não apenas as causas e natureza da riqueza das nações.
(10)Civitas, polis, Estado...
(11)Que é fantasia? É sonho, imaginação, projeto. “Fantasia organizada”... “Fantasia desfeita”, recordam?
Uma fantasia bem a propósito, in fieri: voltar a desenhar a lógica, a gramática e a retórica, não mais da Academia amazônica, mas da Amazônia ela mesma. Propor um Projeto Amazônia não só desejável e plausível, mas exeqüível. Em que a atenção dissolva as tensões. Um propósito trivial. Vale dizer: fundamental.

Um comentário:

  1. Anderson, parabéns pelo blog !

    Você teria o texto do profº Armando "Breve introdução à Teoria Geral de uma verdadeira ACADEMIA AMAZÔNICA" em PDF para me disponibilizar?

    Obrigado !

    jrleal3012@gmail.com

    ResponderExcluir